O homem e o mar
Homem livre, o oceano é um espelho fulgente
Que tu sempre hás- de amar. No seu dorso agitado,
Como em puro cristal, contemplas, retratado,
Teu íntimo sentir, teu coração ardente.
Gostas de te banhar na tua própria imagem.
Dás-lhe beijo até, e, às vezes, teus gemidos
Nem sentes, ao escutar os gritos doloridos,
As queixas que ele diz em mística linguagem.
Vós sois, ambos, discretos tenebrosos;
Homem, ninguém sondou teus negros paroxismos,
Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos;
Os segredos guardais, avaros, receosos!
E há séculos mil, séculos inumeráveis,
Que os dois vos combatem n'uma luta selvagem,
De tal modo gostam n'uma luta selvagem,
Eternos lutadores ó irmãos implacáveis!
Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"
Tradução de Delfim Guimarães
Esterilidade
Ao vê-la caminhar em trajos vaporosos,
Parece que desliza em voluptuosa dança,
Como aqueles répteis da Índia, majestosos,
Que um faquir faz mover em torno d'uma lança.
Como um vasto areal, ou como um céu ardente,
Como as vagas do mar em seu fragor insano,
— Assim ela caminha, a passo, indiferente,
Insensível à dor, ao sofrimento humano.
Seus olhos têm a luz dos cristais rebrilhantes,
E o seu todo estranho onde, a par, se lobriga
O anjo inviolado e a muda esfinge antiga,
Onde tudo é fulgor, ouro, metais, diamantes
Vê-se resplandecer a fria majestade
Da mulher infecunda — essa inutilidade!
Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"
Tradução de Delfim Guimarães
Obsessão
Os bosques para mim são como catedrais,
Com órgãos a ulular, incutindo pavor...
E os nossos corações, - jazidas sepulcrais,
De profundos também soluçam, n'um clamor.
Odeio do oceano as iras e os tumultos,
Que retratam minh'alma! O riso singular
E o amargo do infeliz, misto de pranto e insultos,
É um riso semelhante ao do soturno mar.
Ai! Como eu te amaria, ó Noite, caso tu
Pudesses alijar a luz que te constela,
Porque eu procuro o Nada, o Tenebroso, o Nu!
Que a própria escuridão é também uma teia,
Onde vejo fulgir, na luz dos meus olhares.
Os entes que perdi, - espectros familiares!
Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"
Tradução de Delfim Guimarães
Ciganos em Viagem
A tribo que prevê a sina dos viventes
Levantou arraiais hoje de madrugada;
Nos carros, as mulher, com a torva filharada
Às costas ou sugando os mamilos pendentes;
Ao lado dos carrões, na pedregosa estrada,
Vão os homens a pé, com armas reluzentes,
Erguendo para o céu uns olhos indolentes
Onde já fulgurou muita ilusão amada.
Na buraca onde está encurralado, o grilo,
Quando os sente passar, redobra o meigo trilo;
Cibela, com amor, traja um verde mais puro,
Faz da rocha um caudal, e um vergel do deserto,
Para assim receber esses pra quem está aberto
O império familiar das trevas do futuro!
Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"
Tradução de Delfim Guimarães
O Ideal
Nunca poderá ser pálida bonequinha,
Produto sem frescor qual manequim de molas,
Pés para borzeguins, dedos pra castanholas,
Que há de satisfazer almas como esta minha.
Eu deixo a Gavarni, poeta de enfermaria,
Seu rebanho gentil de belezas cloróticas,
Porque nunca encontrei nessas plantas exóticas
A rubra flor que anela a minha fantasia.
Meu torvo coração, na angústia que o oprime,
Sonha Lady Macbeth, alma fadada ao crime,
Pesadelo infernal que um Ésquilo criou;
E contigo também, ó Noite grandiosa,
Filha de Anjo Miguel, esfinge misteriosa,
Sereia colossal que algum Titã gerou!
Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"
Tradução de Delfim Guimarães